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quadros comentados

“A Herança”

Quadros de 1905 e de 1906, por Edvard Munch, pintor norueguês (1865-1944)

Quadro de Edvard Munch, pintor norueguês (1865-1944) de 1906, intitulado “A Herança”

Quadro de Edvard Munch, pintor norueguês (1865-1944) de 1906, intitulado “A Herança”

A sífilis é, sem sombra de dúvida, uma das doenças mais míticas da história da Medicina. Foi apelidada de várias formas, desde “great pox“ (por oposição à denominação de “smalpox”, varicela), até “french pox” (“morbus gallicus” ou “mal francês”), passando por “doença napolitana”, “doença polaca”, “doença germânica”, “doença castelhana”, “rash ou úlcera de Cantão”, e ainda muitas outras designações, aludindo a que, qualquer país atingido, imputava logo ao seu vizinho a respetiva origem, certamente para que, de uma forma algo indireta, subconsciente ou figurativa, pudesse clamar que o comportamento pecaminoso que lhe estava subjacente, pois trata-se de uma doença sexualmente transmissível, viria certamente dos outros e que jamais poderia ter sido causada pelos próprios. Independentemente desta diversidade de epónimos, ficou universalmente conhecida, entre os médicos, pela “grande imitadora”, devido à enorme variabilidade de quadros clínicos que pode comportar ao logo das suas reconhecidas três fazes.

Deve-se ao italiano Girolamo Fracastoro (1476-1553), médico, académico, poeta, matemático, geografo e astrónomo a origem do nome pelo que passou a ser universalmente conhecida, tendo esta insigne figura da história da Medicina ficado ainda conhecida por ter sido a primeira a descrever o quadro clínico do tifo e por ser a introdutora da noção de doença contagiosa (“contagion”) que antecedeu a teoria da origem microbiana das enfermidades, que viria definitivamente a destronar, mais de três séculos depois, a teoria da geração espontânea que até então vigorava. No seu livro “Sífilis sive morbus gasllicus” o seu autor dá precisamente esse nome a um pastor que, ao ter ousado insultar o Deus Apolo, recebeu o divino, mas terrível castigo, de ter sido acometido por tão temido e horrífico mal. Nesse mesmo texto, o seu autor preconizava a utilização da terapêutica à base de sais mercuriais ou de óleo de guaiaco (de origem vegetal) que, até à introdução do derivado arsenical, denominado de “salvarsan”, sintetizado por Paul Ehrlich em 1907 e, posteriormente, da penicilina, descoberta por Alexander Fleming em 1928, foram largamente utilizados pelos médicos de quase todo o mundo.

Se a doença teve ou não origem no denominado Novo Mundo e se foi trazida para a Europa pelos navegadores de Colombo, ou se se tratou de uma mutação ocorrida noutra espiroqueta causadora de alguma das trepanomatoses endémicas existentes ou das que têm carater zoonótico conhecido, é um assunto ainda em aberto, embora a maioria dos investigadores seja adepto da primeira teoria. O que se sabe com segurança, é que é potencialmente causadora de graves consequências em múltiplos órgãos ou sistemas, podendo ser transmitida da mãe para o feto durante a gestação ou durante o parto.

Consta que atingiu muitas pessoas bastante conhecidas, de entre as quais se contam o compositor Franz Schubert, o filósofo Arthur Schopenhauer, os escritores Charlers Baaudelaire e Guy de Monpassant, ou o pintor Édouard Manet. O famoso pensador germânico, Friedrich Nietzsche, chegou a afirmar que suspeitava que os seus distúrbios psiquiátricos teriam nesta infeção a sua origem, o que é certamente uma tese ainda por confirmar. Independentemente destas interessantes especulações, onde se inclui a hipótese do pintor, músico, poeta, dramaturgo e teórico de mérito reconhecido, Gerard de Lairesse,, oriundo dos Países Baixos, evidenciar sinais de poder ter contraído precisamente a forma congénita da doença, pois apresenta um sinal considerado patognomónico na semiologia clássica (o nariz em sela de cavalo), tal como se pode observar sem grande esforço, quer no seu próprio autorretrato, quer no que foi elaborado pelo pincel do genial Rembrandt, seu contemporâneo mestre.

Quadros, respetivamente, “Autoretrato”, do sec.XVII, por Gerard de Lairesse, 1641-1711, e, “Retrato”, de 1665, por Rembrandt von Rijn, 1608-1669

“Autoretrato”, do sec.XVII, por Gerard de Lairesse, 1641-1711, e, “Retrato”, de 1665, por Rembrandt von Rijn, 1608-1669.

Existem ainda muitas mais referências na pintura, o que demonstra que marcou muito o pensamento dos criadores artísticos, sobressaindo nessas obras, a pintura alegórica do pintor italiano Bronzino, onde se evidencia uma carantonha supostamente reveladora de um comprometimento da face por esta mesma doença, como não raramente acontecia, e que por sua vez podia evoluir, se não tratada e em certos casos, para uma destruição quase total da própria fácies da pessoa afetada, tal como ficou subentendido na obra do belga Felicien Rops, através do sugestivo título de “A prostituição e a loucura dominam o mundo”.

“Vénus e Cupido”, de 1540, por Angelo Bronzino, 1503-1572, (idem, pormenor do canto inferior direito), e, “A loucura e a prostituição dominam o muindo”, do sec. XIX, por Felicien Rops, 1833-1898

“Vénus e Cupido”, de 1540, por Angelo Bronzino, 1503-1572, (idem, pormenor do canto inferior direito), e, “A loucura e a prostituição dominam o muindo”, do sec. XIX, por Felicien Rops, 1833-1898

Pode perguntar-se porque razão teria o genial pintor Edvard Munch abordado o tema, de forma tão brutal, nos seus dois quadros denominados sugestivamente de “A herança”. Sabe-se que a sua patobiografia é muito rica e controversa, tendo padecido de alcoolismo e passado por longos períodos de depressão, para o que foi tratado por meio de electroconvulsivoterapia, estando algumas vezes internado (foi acometido também de uma grave hemorragia intraocular e esteve gravemente enfermo com a celebérrima gripe asiática no dealbar da 1ª grande guerra mundial), e frequentado logicamente muitas consultas de afamados clínicos em diversos países. O seu sofrimento interior ficou muito bem expresso em diversos autorretratos, de que o que denominou de “No inferno” é um dos mais sugestivos, nem sequer carecendo de qualquer adicional explicação para tal se tornar imediatamente percetível. Há, ainda, quem tenha chegado a admitir que foi igualmente acometido pelo também denominado “mal luético”.

Um outro seu contemporâneo, não menos genial e com uma patobiografia igualmente apaixonante e complexa, o francês Toulouse Lauterec, abordou esta temática de uma forma complementar, pois, para além da sua acentuada dismorfia (picnodisostose ?, osteogenesis imperfecta ?, doença de Morquio ?, displasia poli-epifisária ?, acondroplasia? raquitismo? ou outra doença geneticamente transmissível, hipótese apoiada pelo facto de se saber da consanguinidade dos seus progenitores), terá igualmente padecido de alcoolismo e de depressão, e, segundo alguns estudiosos, da mesma enfermidade de transmissão sexual, o que pode perfeitamente ser admissível, dado ter vivido grande parte da sua curta e excêntrica existência, já na fase adulta, no interior dos prostíbulos da cidade das luzes, tendo-se tornado literalmente indiferente à sua origem social de membro destacado da insuspeita e venerável nobreza gaulesa.

Quadros, respetivamente, “Autoretrato no inferno”, de 1903, e, “Autoetrato”, por Edvard Munch, 1865-1944, e, Henri de Toulouse Lautrec, 1864-1901

Quadros, respetivamente, “Autoretrato no inferno”, de 1903, e, “Autoetrato”, por Edvard Munch, 1865-1944, e, Henri de Toulouse Lautrec, 1864-1901

No primeiro caso, será de admitir que a crueza da representação pictórica daquela enfezada criança ao colo da sua inocente e chorosa mãe, com certeza mortificada pela dor resultante de se sentir completamente impotente para poder valer ao seu querido filho, possa representar o facto do seu autor ter sido também confrontado com uma dor algo equiparável e incompreensível quando, ainda jovem, perdeu, num curto espaço de tempo, a mãe e uma das irmãs, ambas vítimas da denominada peste branca (a temível tuberculose). Tanto as mães representadas no quadro, quanto o autor, ter-se-ão certamente questionado, como o fazem, muitas vezes, verdadeiramente angustiados, os doentes vítimas de inesperados infortúnios, exclamando de si para si: Porquê a mim? Que posso eu mais fazer? O que me vai acontecer a seguir? Podem os médicos atenuar o meu terrífico sofrimento ou o do meu familiar? Existe tratamento ou cura possível? Quem sabe, mesmo, se o próprio não terá presenciado tal inesquecível cena, quando vagueava, meio perdido, no labirinto das múltiplas salas de espera dos hospitais ou dos consultórios onde procurou ajuda para minorar o seu mal!

No segundo caso, a realidade vivida pelo seu autor, no interior dos bordéis do bairro parisiense onde se situa o celebérrimo cabaret “Moulin Rouge”, levou-o antes a retratar, talvez, quiçá impregnado em absinto, a sua bebida preferida, a inspeção sanitária a que as meretrizes eram obrigadas a serem submetidas, e que terá eventualmente presenciado, quando os agentes policiais as não levavam para os calabouços, tal como foi retratado por um pintor seu conterrâneo, Étienne Jeaurat, pouco mais de um século antes, numa altura em que a apelidada libertinagem era bem mais reprimida pelas autoridades e pela legislação em vigor.

Quadros, respetivamente, “Condução das prostitutas para a Salpetriére”, de 1770, e, “A mosinspeção médica”, de 1894, por, Étienne Jeaurat, 1699-1789, e, Henri de Toulouse Lautrec, 1864-1901

“Condução das prostitutas para a Salpetriére”, de 1770, e, “A mosinspeção médica”, de 1894, por, Étienne Jeaurat, 1699-1789, e, Henri de Toulouse Lautrec, 1864-1901

Passados tantos anos sobre tudo aquilo que foi abordado até aqui, numa altura em que os notáveis avanços científicos verificados propiciaram um conhecimento bastante mais completo desta problemática e que se estendeu também à sua epidemiologia, tendo, assim, passado a ser possível saber, com detalhe, qual é a estrutura molecular dos diversos microrganismos que são causa etiológica das variadas enfermidades de transmissão sexual, ter passado a dispor-se de tratamento adequado para a quase totalidade dos casos, e de algumas vacinas com grande eficácia na sua prevenção, para algumas das afeções desta natureza, pode perguntar-se se é tempo de nos passarmos a preocupar antes com outro género de doenças. A resposta deve ser, categórica: Ainda não. Explico.

Porque apesar de todos estes inegáveis avanços, a que se junta o facto de estarmos a iniciar uma nova era, ou seja, de se fornecer medicação antiretrovirica a membros de populações com elevado risco potencial, para evitar que adquiram a infeção pelo VIH, permanecem alguns obstáculos de monta que vale a pena detalhar resumidamente. A realização dos testes serológicos que permitiria identificar os infetados e trazê-los para o tratamento, evitando assim que possam passar a infeção de que padecem, fica ainda muito aquém do desejável (para o HIV e para a Hepatite B). A utilização dos métodos de barreira não é de todo a regra nos relacionamentos sexuais esporádicos ou no denominado sexo comercial, levando a um acentuado incremento do número de casos causados pelos agentes ditos “clássicos”. A resistência aos antibióticos, para alguns dos agentes microbianos envolvidos, designadamente para a nesseria gonorrhoeae, assume proporções preocupantes nalguns estudos. Existem certos agentes que se desconhecia apresentarem a capacidade de transmissão sexual ou da grávida para o feto, como seja o caso dos vírus Zica, Ébola e West Nile. Doenças com epidemiologia predominante fecal-oral que já eram residuais em países com adequado nível sanitário básico, ressurgem em populações não tidas, a priori, como sendo de elevado risco, provocando surtos em vários países onde eram perfeitamente excecionais, como no caso recente da Hepatite A, etc.

Em suma, devemos realçar, a finalizar que as doenças venéreas, pelo facto de estarem ligadas à atividade sexual, e esta ter sido, durante tantos séculos, socialmente reprimida e ligada à noção de pecado, por via da moral religiosa vigente, foram remetidas a uma posição de clandestinidade, por via desse forte contributo. A prostituição, dita a “mais velha profissão do Mundo” sempre foi tolerada, em certa medida, porque era suposto cumprir uma função social que não encontrava resposta em certos contextos específicos, tais como, por exemplo, a dita “iniciação carnal” dos homens, bem como a atividade sexual dos soldados, em tempo de guerra. Relativamente às mulheres, ditas “de bem”, que deveriam ficar reservadas somente para as funções de procriação e de educação dos filhos, era considerado vergonhoso procurarem o prazer, até porque frequentemente nem sequer tinham direito a escolherem o seu marido, ou melhor, o casal não tinha geralmente acesso a escolherem-se um ao outro, e, muito menos, a rejeitarem-se, por livre opção, depois de celebrado o sacramento do matrimónio. Durante algum tempo, como no caso do período invocado no quadro de Toulouse Lautrec pintado na “Belle Époque”, a inspeção médica das meretrizes era incentivada, para evitar que algum mal pecaminoso fosse levado para a alcova do lar dos seus clientes, e, assim, pudessem vir a contaminar as respetivas esposas, ou, ainda, eventualmente, os seus próprios filhos. Os contextos sociais são, hoje em dia, bem diversos, e a doença do momento, então a sífilis, deu lugar ao HIV/SIDA, embora muitas outras existam para além destas duas, sem, contudo, comportarem a carga simbólica destas

No entanto, ao contrário de todas as restantes, a dimensão mítica do vírus da imunodeficiência adquirida não tem qualquer comparação, porque, para além do mais, foi capaz de transformar o sexo, até à sua passagem a doença crónica, por via da extrema eficácia da terapêutica antiretrovírica hoje disponível, num veículo da própria morte, o que contrasta em absoluto com as duas funções que historicamente lhe são atribuídas: a manutenção da espécie e o prazer. O relacionamento com estes doentes, como se sugere nos dois quadros, da autoria de um pintor norte-americano que faleceu como consequência da evolução desta mesma doença, não deve supor julgamento moral de comportamentos, e não pode estigmatizar as pessoas, devendo antes estar imbuído da empatia e do humanismo que o devem caracterizar em todas as restantes circunstâncias. O médico, estando obrigado ao segredo profissional, não deve, nunca, vestir a pele de juiz, de polícia ou de padre.

“Respiração” (1987) e “Abraço” (1992) de Hugh Steers, 1962-1995

Respiração” (1987) e “Abraço” (1992) de Hugh Steers, 1962-1995

Uma última questão que apresenta inegáveis contornos do foro ético, merece também ser referida, dado que remete precisamente para os quadros que decidi eleger para comentar e porque traduz um cenário que aconteceu recentemente no Serviço hospitalar que dirijo em dois casos no curto espaço de escassos meses. Será legítimo que uma mulher grávida, adulta e com capacidades cognitivas suficientes para a adequada compreensão do problema em questão, a quem é efetuado, pelo seu médico, o diagnóstico de uma infeção transmissível ao feto, cujas consequências para a futura saúde deste último lhe podem ser muitíssimo graves e com lesões irreversíveis em diversos órgãos vitais, ao ponto de serem eventualmente incompatíveis com a própria vida, ou condicionar grandemente a sua autonomia e qualidade de vida enquanto permanecer vivo, depois de devidamente esclarecida, de lhe ter sido dado algum tempo para refletir, incluindo ouvir outras opiniões médicas abalizadas, se recuse ser medicamentada (afirmando convictamente, contudo, que quer ter a criança), quando os fármacos são inquestionavelmente eficazes e inócuos, e esta estratégia é a melhor, ou mesmo, a única forma de a própria ser adequadamente tratada, e dessa forma evitar-se a nefasta transmissão da infeção ao seu filho, com o potencial cortejo descrito de complicações? Sem rodeios: Não. Em caso algum.

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