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“Viver é ser outro”

Fernando Pessoa, – Bernardo Soares – , Poeta Português, 1888-1935, in “Livro do Desassossego”, 1913

Retrato de Fernando Pessoa efetuado por Almada Negreiros em 1964

Retrato de Fernando Pessoa efetuado por Almada Negreiros em 1964

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O maior poeta português do sec. XX, foi certamente um dos maiores de sempre de toda a Humanidade, sendo conhecido, não só por ter usado com inusitada mestria, a par do Português da sua terra natal, igualmente o francês e, sobretudo, o inglês, mas ainda pelo facto invulgar, entre os seus congéneres, de lhe serem conhecidos presentemente várias dezenas de heterónimos, alguns dos quais tão importantes como o seu próprio criador. Teve uma vida simultaneamente curta e trágica, pois faleceu doente e em sofrida solidão num quarto de um pequeno hospital de Lisboa de causa ainda algo polémica, alegadamente relacionada com os seus reconhecidos hábitos de ingestão excessiva de bebidas alcoólicas. Teve desamores, não foi particularmente bem-sucedido na sua atividade profissional oficial e nunca obteve em vida o devido reconhecimento da sua genialidade ímpar, legando à posteridade uma celebérrima arca recheada de surpreendentes tesouros literários, fruto da sua incomparável criatividade e que ainda hoje desperta inusitada curiosidade e é motivo de aturada investigação por parte dos seus inúmeros cultores. Viu partir, durante a sua infância, igualmente ceifados precocemente por doença, não só o pai, mas também um irmão e uma meia-irmã, para além de se ter deparado ainda com o falecimento de uma avó, com quem passou a viver pouco tempo depois de voltar definitivamente de terras do império de Sua Majestade, a Rainha Vitória, a mesma que haveria de lhe dar o único prémio que obteve, e, finalmente, por se ter confrontado também com o brutal suicídio de um companheiro de lides literárias, Mário de Sá-Carneiro, pouco tempo depois de ambos terem assumido a direção da celebérrima Revista cultural “Orpheu”.

Dir-se-á, pois, que o poeta sempre se soube travestir de vários “eus”, e que o “outro” foi sempre alguém que sentiu como se fosse o próprio. No ato médico, na relação médico-doente, o clínico, de olhos-nos-olhos, não deve ocultar ao seu paciente qual a verdadeira natureza da enfermidade de que este padece. Mas deve também saber reconhecer o direito deste ao inverso, digo, a não querer ser informado! Por mais grave que seja o pronóstico da enfermidade, nada substitui então a empatia nesta relação tão singular, o que supõe sempre a utilização de uma linguagem (gestual, de expressão facial e de discurso oral) que consiga transmitir, em simultâneo, convicção, tranquilidade e esperança, isto é, que seja Humana na sua plenitude e que represente como que uma transferência de posições, o que implica ter a capacidade suficiente para se saber meter na pele afetiva do contrário, de modo a responder com veracidade a estas duas perguntas tão básicas: E se fosse comigo ou com um dos meus mais queridos familiares ou amigos, como seria? Ou ainda: E se, por acaso, fosse eu o doente e aquela pessoa, o meu médico?

Tudo isto implica ter tempo. Tempo para nos conhecermos a nós próprios. E tempo para conhecermos os nossos doentes, a sua família e a sua história de vida, quais as suas crenças, as tradições que possui e o conjunto de valores por que se rege, sem o que aquela importantíssima mensagem nunca será adequadamente transmitida. É que a verdadeira Medicina, ou é do Homem para o Homem, ou nunca poderá ser apelidada de tal.

No quadro de John Collier, com um título tão sugestivo de “Sentença de Morte”, podemos apreciar isso mesmo. De que outra maneira se poderia transmitir tão catastrófica notícia, se não desta forma, no tranquilo recato de um consultório, no qual aquilo que se pode escutar, depois de proferida “a sentença”, não poderá ser outra coisa que não a respiração meio ofegante, mas solidária, quer do “carrasco”, quer da sua “vítima”, sentimento de grande compreensão mútua que os respetivos fácies não podem deixar de transparecer. Como se fosse em sentido inverso. Tal e qual.

Talvez que o artista se tenha sentido motivado a pintar um quadro com um tema tão interpelante e inusitado, porque quiçá, terá vivenciado alguma experiência que o impeliu a esse doloroso gesto. Sabe-se, através da sua biografia, que a esposa, Marian Huxley (também ela uma promissora pintora e tia do famoso escritor britânico, Aldous Huxley), ainda jovem, pouco depois de ter dado à luz o primeiro filho do casal, adoeceu com uma grave depressão psicológica pós parto, tendo ido para Paris, para aí ser tratada mais convenientemente, vindo a falecer pouco tempo depois de suposta pneumonia. Como lhe teriam sido transmitidas essas terríveis notícias, pergunto? Que outro se terá introduzido no seu eu?

Se há imagens que falam por si e títulos de obras que nos fazem antecipar com muita aproximação aquilo que nelas podemos vir a observar, estamos certamente perante dois notáveis exemplos. O sofrimento faz parte da vida dos seres humanos e a procura em obviá-lo é uma das missões inalienáveis do médico, tanto quanto falar a linguagem da verdade e saber transmitir, de forma adequada, o prognóstico inerente ao diagnóstico formulado. Por pior que este seja, há que encontrar o meio, o momento e o local mais adaptados à circunstância concreta e no respeito pela vontade e personalidade do doente, sempre num clima recatado e com uma indispensável cumplicidade afetiva. Este é um dos pilares onde deve assentar a ética do relacionamento humano, com especial acuidade na que se refere ao contexto do médico perante o seu doente. Olhos nos olhos. Mão na mão. Mente na mente.

“Sentença de Morte” de 1908, por John Collier, 1950-1934, “Sofrimento” (sec XVII) (Charles le Brun, 1619-1690) (Coleção Wellcome)

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